quarta-feira, 26 de maio de 2010

vazios


Noite escura. Numa divisão escura a noite estava fria, húmida, enevoada. O piso estava mole, dando a sensação pantanosa. Causava medo a quem medo dela tinha.

Uma estação vazia, no meio de nenhures, bancos vazios, silabava o silêncio, imperando sobre o grito cego do vento que me atingia, tentando levar-me para o sítio onde a inércia reside.


Mas tu não tinhas medo. Quando a tua visão finalmente se habituou à sua falta de luz, pintou-se lentamente uma negra e alta parede, velha, frágil e alternadamente nua pelo estuque que dela saltou. Notavam-se, nessas zonas, os tilojos que a mantinham erguida: também eles velhos, frágeis e sem a ordinária tonalidade vermelha-viva que os caracteriza. Alguns até já eram ninho de pequenas plantas. Duas portas, uma ao lado da outra, te saltaram à vista, bem centradas na parede: ornadas de por teias-de-aranha empoeiradas, de uma cor morta que as envelhecia ainda mais: uma mais pequena que tu, outra que ultrapassava bem a tua altura. Faziam lembrar as portas de um anão e de um gigante.

Eu ia caminhando para ela, lutando contra o vento, e nenhuma parte deste me trazia nenhum tipo de ruído que me alertasse a chegada de um comboio. Então decidi não lutar com tanta ferocidade, afinal tinha tempo... Se um comboio estivesse para chegar, ouvi-lo-ia...

A parede escorria humidade, o ambiente estava frio, e tu quiseste dali sair. Sem pensar duas vezes, abriste rapidamente a porta que te dava pela cintura e começaste a tentativa de por ali fugir.


Mas a chegada de um comboio foi captada pela minha visão, e eu corri. Corri tão rápido que a minha alma quase não conseguiu acompanhar-me. O comboio arrancou, com o som grave da sua buzina. Mas eu continuei a correr, o vento já não alterava a minha velocidade, a minha alma cansou-se e deixou-me a meio, e eu corria, os cabelos entravam na minha boca e no meu nariz, incomodando-me, e eu corria, e continuei a correr sempre, até quando o comboio já não constava da minha linha de horizonte...



Porque é que insistes em passar por uma porta minúscula, se tens uma tão grande a teu lado?
E eu? Porque é que eu insisto em correr atrás de um comboio que já partiu?

domingo, 23 de maio de 2010

tom,


Nos meus caracóis ri-se a rebeldia dos teus cabelos negros. Eles riem sob sorrisos que subestimas.
Dos teus passos ritmo os meus, descompassados mas felizes. Das tuas corridas, da tua marcha lenta, te acompanharei, com a graça e simplicidade de uma criança e com a dedicação de uma maré centripta insistente.
Dizem-me que não se pode apostar num tom se não se teve a certeza como a ele se chegou, para se ir pintando aos poucos e por tentativas. Mas a rebeldia dos teus cabelos leva os meus a debruçar-se sobre o cavalinho sem medo algum de cair, nadando num tom incerto, e por isso sem temer o seu desencontro.
E pinto sem saciar, sem temer, sentimentos, sons e símbolos que conheces.


O vento dança nos meus caracóis. O vento dança em ti, rebelde. O vento leva-me na tua dança.
Hoje passearei o que ontem tentaste esconder no peito.

Fazes-me bem.

sábado, 8 de maio de 2010

gritos ocos, lugares vazios.


Lá fora, uma mulher tentava correr com saltos frágeis que a impediam. De biquinhos dos pés ia ela, imperando e compassando o seu esforço. Aguaceiros dominavam a manhã, ora ameaçando grossa precipitação, ora parando. Iludindo.
Sentei-me. E olhaste para mim com cara de quem nada entendia, fazendo-me sentir a pessoa mais incompreendida, mais estranhamente perdida em ideias sem nexo.
"Como? Diz-me como não entendes? Mentes ocas, dogmáticas, instáveis, mutáveis, limitadas, desprovidas de imaginação. Intolerância, teorias desfasadas da realidade, terminologia barata, sistemas desconectados, estas são as pessoas que me assustam! São estas que mais temo na vida. Sei que todos nós cometemos erros de julgamento que podem eventualmente ser corrigidos, desde que tenhamos em nós capacitado o reconhecimento, as coisas poderão compor-se. Agora, espíritos tacanhos e intolerantes, sem imaginação, são como parasitas que transformam o hospedeiro, mudam de forma, sobrevivem e ainda vingam. São uma causa perdida, e eu não quero vê-los aqui por perto!"
Talvez tenham sido demasiadas as palavras, talvez tenha alongado a linha de raciocínio, talvez tenhas perdido o fio à meada quando ainda nem a meio ia. Sei que continuaste exactamente com o mesmo olhar, oco, desprovido, desinteressado e neutro. Como se algo morto te tivesse dominado, tudo numa questão de segundos. Ainda uma luz me espreitou ao fundo do túnel quando me lembrei que provavelmente fosse um "black-out" introdutório da metamorfose, pensei que de seguida irias ser alvo de um despertar repentino. Mas o "black-out" persistiu demasiado, um fusível queimou algures na tua cabeça. Baixei os braços.

Não desisti. Apenas tentarei depois.